Recentemente, muita atenção tem sido dada aos chamados dados do mundo real (real world data, em inglês). De forma sucinta, os dados do mundo real contrastam com os dados de ensaios clínicos, na medida em que não são obtidos num ambiente controlado, mas sim, como o próprio nome indica, no mundo real. Registos de doentes ou dados de atividade hospitalar são dois exemplos de dados do mundo real.
No entanto, o potencial de utilização de dados do mundo real nem sempre é claro para quem trabalha fora da área da economia da saúde. Não restam dúvidas de que, quando se trata de avaliar a eficácia de um novo medicamento, o gold standard são os ensaios clínicos aleatorizados e controlados.
Apresento de seguida um exemplo simplificado que ilustra como os dados do mundo real podem ser uma mais-valia como complemento aos dados de um ensaio clínico. Imaginemos um ensaio clínico para um medicamento oncológico, onde os doentes são alocados aleatoriamente a um de dois grupos, o grupo de tratamento ou o de controlo, e seguidos ao longo de cinco anos.
A submissão de evidência sobre o custo-efetividade do medicamento em questão, por parte do fabricante, às autoridades responsáveis pela avaliação de tecnologias de saúde (o Infarmed em Portugal) tipicamente inclui um modelo económico que compara os custos e benefícios incrementais do medicamento ao longo de um horizonte temporal longo (i.e. 30 ou mais anos).
Uma componente importante dos benefícios incrementais de um medicamento oncológico consiste numa maior probabilidade de sobrevivência ao longo do tempo para os doentes alocados ao grupo de tratamento, relativamente ao grupo de controlo. A principal fonte de dados para estimação das probabilidades de sobrevivência para cada um dos grupos é o próprio ensaio clínico: as curvas de sobrevivência observadas podem ser extrapoladas para o futuro, com recurso a modelos estatísticos.
A estimação das probabilidades de sobrevivência ao longo do tempo com base no ensaio clínico é um exercício complexo. Os dados do mundo real podem fornecer um ponto de referência para ancorar as extrapolações do grupo de controlo. Por exemplo, se existir um registo de doentes com perfil clínico semelhante ao dos participantes no ensaio clínico com dados ao longo de 10 anos, é possível calcular a probabilidade de sobrevivência desses doentes após 10 anos e utilizá-la, num primeiro passo, para validar as extrapolações da curva de sobrevivência para o grupo de controlo. Caso a probabilidade de sobrevivência observada a 10 anos no registo de doentes seja significativamente diferente da sugerida pelas extrapolações obtidas para o grupo de controlo, é possível, num segundo passo, aplicar uma restrição ao modelo, forçando a extrapolação a 10 anos a igualar os dados observados no mundo real nesse momento no tempo.
Em suma, incorporando dados do mundo real, é possível validar e corrigir extrapolações feitas com base em dados de ensaios clínicos, para assegurar que estas estão em linha com o que se observa na realidade. O resultado são modelos de custo-efectividade mais fiáveis, que permitem decisões mais justas no que toca à alocação de recursos no sector da saúde.
Este texto trata-se de uma republicação de um artigo de opinião publicado no Netfarma - leia o original aqui.