Durante os dois confinamentos a que fomos sujeitos, as rotinas diárias do mundo laboral alteraram-se profundamente: acabaram os almoços de trabalho, os rituais para escolher a roupa mais indiciada, as longas filas nas estradas, as reuniões com toda a equipa na mesma sala – ficámos “só” com as tarefas, em casa. Apelidamos este fenómeno de desmaterialização do trabalho, que foi seguido de um outro: a crise de propósito. Nesta altura, começámos a perguntar-nos “será que isto é suficiente para ficar no mesmo trabalho?”. Para muitas pessoas, este afastamento laboral conduziu a uma cisão nos níveis de satisfação (e quase de identidade) sobre o papel que o emprego ocupa nas suas vidas. E isto colocou graves entraves à motivação e retenção dos actuais trabalhadores, mas também sérios desafios na atração de novos talentos.
Para travar esta desmotivação, é essencial que quem lidera saiba motivar e criar uma noção de “valor” nos colaboradores, mesmo gerindo à distância. Agora, mais do que nunca, é preciso diferenciar os papéis do gestor e do líder. E dar primazia a este último. Quando falamos de gestão, referimo-nos ao cumprimento de KPIs, objetivos, resultados, métricas com foco no presente; quando pensamos em liderança, estamos a falar de processos, de planeamento com um foco a médio-longo prazo e de potencial e mudança.
Estas características são típicas de lideranças e organizações de futuro. São precisos novos líderes, que tenham como foco o desenvolvimento e expressão das competências dos trabalhadores que compõem as organizações, mas, para tal, não precisamos necessariamente de novas pessoas. Estas pessoas já estão nas organizações, só que muitas vezes estão “apagadas” atrás de sistemas de gestão que não dão espaço, nem tempo para priorizar os vetores e as atividades mais adequadas. Diria que, actualmente, temos algumas organizações que se habituaram a actuar em “emergência”, para ontem e temos “gestores” que sobrevalorizam a “gestão do que a vista alcança”, sem perceber que muitas vezes estavam a sofrer de miopia.
Este estilo de liderança “de futuro” depende de uma gestão que vai além da distância do toque e isto implica delegação, por isso e acima de tudo, confiança. O chefe não precisa de estar “em cima” dos colaboradores para saber que trabalham. Necessita de saber apoiar-se na equipa para encontrar a solução, ouvir, discutir, negociar e conhecer “as suas pessoas”- perceber o que é único naquela pessoa, ir ao individual, ao potencial, pôr mais humanidade na gestão das pessoas. Mas a confiança não é “um comprimido que se toma de manhã com o café”. Sem relação, sem troca, sem nos expormos não há confiança. E para tal, os líderes têm de admitir a vulnerabilidade no local de trabalho e têm, eles próprios, de ser vulneráveis, percebendo que esta característica não é um sinal de fraqueza, muito pelo contrário.
Curiosamente, a pandemia veio também potenciar estas novas relações. Muita gente se recorda do tempo em que as reuniões online eram interrompidas por filhos aos berros, campainhas e entregas de encomendas, animais de estimação que pediam afeto. De repente, os chefes também eram humanos, também tinham gatos que passavam à frente do ecrã, cães que ladravam, vizinhos que faziam obras de manhã. O medo da pandemia obrigou-nos a orientar-nos num caos não premeditado, e, muito rapidamente, as semelhanças entre níveis hierárquicos surgiram. Vimos momentos de partilha genuína, trabalho de equipa e preocupação com o outro durante esta fase. Estas circunstâncias aproximaram-nos e mostraram-nos que é possível gerir cultura e equipa sem estarmos juntos cinco dias por semana, oito horas por dia, frente a frente. É apenas preciso criar momentos de cultura que impulsionem a confiança.
E foi o facto de termos conseguido organizar-nos neste caos, e ainda assim preocuparmo-nos (genuinamente) com o outro e com o trabalho que me faz acreditar que precisamos de “novas” lideranças, não necessariamente de novas pessoas.
Por tudo isto, acredito que este é o momento certo para a mudança nas organizações, para que haja espaço para as novas lideranças. E nas empresas há a vontade de fazer esta transição. Não é raro falar sobre estes tópicos nas minhas aulas com executivos e haver quem se insurja, justificando que só não têm este tipo de abordagem porque sentem que “não há tempo para o fazer” ou “chefias que o permitam”. Isto só demonstra que existe abertura para a mudança. Existe, também, ainda uma grande confusão entre processos e resultados. Por vezes, vemos casos em que se premeiam pessoas pelos resultados, sem nunca averiguar como chegaram aos mesmos, podendo correr-se o risco de serem ignorados ou até mesmo desvalorizados processos abusivos, que levam ao burnout ou que desmontam equipas. Vemos ainda muitos destes profissionais a chegarem a lugares de direção pois os métodos que utilizaram podem ser bem-sucedidos no curto-prazo, mas que não são os mais éticos e sustentáveis do ponto de vista da gestão de pessoas. Se houvesse mais partilha, conversas e feedback sobre os desempenhos, leiam-se processos, destas chefias, muitos passariam a ser bons líderes. E a cultura sinalizava e modelava quais os valores que são de facto importantes.
Em suma: uma liderança de futuro depende cada vez mais de competências humanas, que possam contribuir para o desenvolvimento do talento e de competências das pessoas que chefiam. Para tal, é preciso delegar e confiar, mas isto só pode surgir se nos permitirmos a ser vulneráveis e dermos um pouco de nós aos outros, para que possam retribuir-nos da mesma forma. Este tema não é novo, a urgência do mesmo é que talvez seja (para alguns) surpreendente!
Este texto trata-se de uma republicação de um artigo publicado no Líder - leia-o, na íntegra, aqui.