Esta analogia é potencialmente incendiária e sensível, pois no campo dos arquétipos da cultura polarizada e “canceladora” em que vivemos hoje, podemos simplesmente dizer que o primeiro lado está no love over gold; e o segundo, no gold over love. Ou ainda, que sequer podemos tentar comparar uma coisa com a outra. Compreensível; mas o facto é que me deparei com este tema enquanto um divertido paradoxo pessoal, transformado ao longo das décadas a partir das experiências aplicadas e estudadas sobre estes dois conceitos.
Se para ser universal é preciso falar da nossa aldeia, aqui vamos nós. A minha trajetória ligada ao do-it-yourself (DYI) aconteceu muito mais devido à subcultura proveniente do punk e da cultura alternativa, underground, assim chamada na altura dos finais dos 1980s – início dos 1990s no meu Brasil, na minha Porto Alegre. Algo que emerge décadas depois da acepção técnica moderna deste conceito. Se deixarmos de lado o fato de que a humanidade sempre teve de ser DYI, de diferentes maneiras, para chegar onde chegou ao longo da História, podemos assumir que o termo como o conhecemos hoje começa a ganhar forma no âmbito da I Grande Guerra (1914 – 1919). Na altura, havia a necessidade de prosseguirmos (retomarmos?) com o ato de fazer, construir, adaptar, reaproveitar materiais e objetos pelas próprias mãos. Esta era não só uma resposta óbvia à falta de dinheiro de um agregado familiar: paulatinamente, galvanizou-se enquanto ética, movimento, redes de comunidades, formas de estar e mais. O DYI é, no seu sentido mais lato, um statement perante o estado do mundo e das coisas; uma forma de estar. Galvaniza-se ao longo das décadas subsequentes e acaba por se transformar em um negócio, enquanto resposta alargada a uma pain point explícita dos seus potential users, no seguimento da II Grande Guerra: o conceito moderno de bricolagem surge em meados dos anos 1940, e o negócio internacional e multimilionário de self-assembled furniture do IKEA - iniciado em 1943, para vender objetos e itens do dia a dia a baixo custo - só começa a ganhar forma como hoje o conhecemos no final daquela década.
A minha consciência DYI partiu da minha realidade socioeconómica: um miúdo filho da classe média trabalhadora, residente entre as atuais ideias de subúrbio e periferia, que escutava os sermões políticos da minha mãe, as conversas sobre música do meu irmão mais velho e as aprendizagens da minha irmã professora enquanto sonhava alto sobre tudo o que o futuro poderia me reservar. E que um dia criou uma amizade fortuita com um grupo de pessoas que se encontrava regularmente no autocarro, pela manhã, a caminho da escola. E abriram-se os portões: impulsionado anos depois pela experiência da Universidade, onde me formei Bacharel em Jornalismo, a minha materialização DYI deu-se através do mundo encantado da sua subcultura comportamental - da música, da moda de segunda mão, das venues “desconhecidas” para concertos e performances, dos zines de papel, da literatura por email, da edição de um livro, de demo tapes e álbuns musicais, da promoção de concertos e festas para arrecadar os fundos necessários para dar o próximo passo... E de repente, parecia ser possível sustentar uma visão crítica do mundo e gerar alguma escala para produzir alguma riqueza ao mesmo tempo.
E surgiu não uma encruzilhada, mas uma segunda estrada que vinha a correr em paralelo e que terminava nesta, por onde nos movimentávamos. Esta curiosidade do what if me levou a um MBA, dois anos depois da minha graduação, graças a uma fonte que entrevistei e que percebeu o meu potencial - e deu-me uma bolsa de estudos. Correu tudo lindamente; mas imerso que eu estava na minha posição de Jornalista Profissional, aficionado pela contracultura DIY, o choque que recebi na primeira aula de Finanças foi… inesquecível, mesmo estando a escrever sobre marketing e negócios já há algum tempo. Com uma naturalidade chocante para o meu contexto da altura, o professor de Finanças discorreu ao detalhe sobre a construção de um Business Plan e a hipótese de pedir um empréstimo bancário para a implementação de um projeto! A turma, maioritariamente das Ciências Sociais e Humanas e a dar uma atenção zero ao tema da gestão aplicada, ficou atordoada… para dizer o mínimo.
Dois anos depois, e findo o MBA, não passei de apocalíptico a integrado como diria Umberto Eco; mas sim, da incompreensão à empatia. Não ao empréstimo à banca, necessariamente, mas à possibilidade de organizar e construir planos também pela perspectiva financeira, económica, de gestão. Percebi que poderia ter um negócio tecnicamente mais bem construído, e gerido, a partir das minhas concepções e ideias - e isso não tinha nada de “traição ao movimento”. Pelo contrário: eu via negócios provenientes da subcultura deixarem de existir (reparem que não me refiro a “crescer”) por causa destas falhas de gestão, e não queria que o mesmo acontecesse comigo. Eis os frutos desta coisa maravilhosa chamada Educação, Conhecimento, Capacitação e Lifelong Learning…
E este é e foi o acréscimo, opcional e não mandatório, de uma forma de estar DYI que também aprendeu a ser empreendedora. E o leitor poderá dizer: “mas ser DYI já não significa ser empreendedor”? Sem dúvida, e é por isso que os conceitos podem estar tão longe quanto tão perto um do outro. Pois num ambiente de gestão e de economia, um empreendedor está invariavelmente associado (nas definições mais comumente aceites) a um contexto que envolve correr riscos maiores do que os usuais para o lançamento e crescimento de um negócio; a uma orientação evidente à escala e à geração de lucro; a um antever claro das pessoas e recursos necessários para o seu arranque inicial e futuro; e a um olhar inteligente na identificação de oportunidades para a criação de valor percebido (infelizmente, nem sempre a antever as suas consequências – tema para outro artigo).
Talvez ainda mais do que um empreendedor social, o conceito mais próximo ao meu DYI “original”, de subcultura comportamental, seja o do intraempreendedor, pois este atua para a mudança a partir de dentro de um sistema organizacional. E está sujeito, portanto, a muitas perdas e ganhos em potencial ao assumir uma postura crítica e pessoalmente genuína, mas hands-on para a transformação. E não vamos aqui definir o que é melhor ou pior. Como diz o atemporal Peter Drucker, numa tradução livre, “a inovação é a função específica do espírito empreendedor”. Se esta vai ser utilizada para gerar riqueza, para afirmar uma visão diferente perante a ordem estabelecida, ou as duas coisas, caberá a cada pessoa e ao seu contexto decidir.
Este texto trata-se de uma republicação de um artigo originalmente publicado pela Exame - leia-o aqui.