No próximo dia 1 de Janeiro de 2023 iremos celebrar os 40 anos do nascimento da Internet, assinalados pelo dia em que o protocolo TCP/IP foi adotado. Sem entrar em grande detalhe, falamos do conjunto de regras e procedimentos que permitem a comunicação de todos os dispositivos em rede: como é que a informação é transmitida, recebida e lida, independentemente do dispositivo, do seu fabricante, localização ou quaisquer outras características. É graças a este e outros protocolos que podemos enviar emails, aceder a websites, enviar fotografias, fazer compras, videochamadas, entre tantas outras coisas. Mas isso é hoje. Até aqui, a história da Internet escreveu-se em dois grandes capítulos: um primeiro período, que se conta entre 1991 e 2004, a que se chama tradicionalmente web 1.0, e os anos seguintes até aos dias de hoje: a web 2.0.
A web 1.0, o advento da world wide web, foi marcado sobretudo por websites, de todas as formas e feitios, eminentemente estáticos, em que o utilizador podia, sobretudo, ler informação. Já a web 2.0 trouxe a lógica ler e criar: para além do que já era possível anteriormente, os utilizadores passaram a poder criar e carregar conteúdos para os websites e a ter um conjunto novo e alargado de interações online. Esta versão da Internet criou a maior parte dos gigantes tecnológicos que conhecemos, trouxe novos modelos de negócio, profissões, produtos, regulação, serviços e um grau de integração e proximidade que nunca tinha sido conseguido na história da humanidade. Contudo, subverteu também um princípio fundamental da época anterior: a Internet deixou de ser de todos. Enquanto na web 1.0 uma parte da infraestrutura da internet – desde logo os seus protocolos - era governada de forma descentralizada por comunidades de voluntários, desde 2004 a esta parte a nossa vida online é intermediada pelas grandes empresas tecnológicas, que consomem os nosso dados e a nossa atenção, realizando receitas extraordinárias, criando uma grande concentração de mercado à custa de várias aquisições de concorrentes mais pequenos.
A popularização, nos últimos anos, das distributed ledger technologies, das quais a blockchain é a mais conhecida, tem criado a ambição de que a Internet possa voltar a ser de todos – a chamada web 3.0. A blockchain, conforme prevista inicialmente no documento técnico da Bitcoin, permite criar um sistema de registo de transações e informação online, distribuído numa rede descentralizada – isto é, que não pertence a uma só entidade –, governada por um modelo de incentivos para atrair e manter quem dela queira fazer parte. A inovação que foi sendo criada nos anos que se seguiram permitiu começar a pensar a internet como um espaço onde para além de se ver e criar informação, se poderia também deter informação. Por informação entenda-se, desde logo, dinheiro virtual (o Bitcoin, o Ethereum ou outras moedas que têm vindo a aparecer), mas também ativos digitais como imagens, audio, domínios e até imobiliário.
Este binómio tecnologia blockchain/modelo de incentivos permitiu lançar as bases para a chamada token economy. Nesta nova economia digital, as plataformas e os serviços são propriedade de todos aqueles que quiserem participar, decidindo assim juntos o curso que os projetos tomam. Há exemplos interessantes: a Helium tem vindo a investir na criação de uma rede wireless para dispositivos IoT, que é assegurada por qualquer pessoa que queira participar. A Uniswap, uma das plataformas mais populares de Decentralized Finance, toma todas as suas decisões de governance por votação, na qual participam todos os token holders da plataforma. E poderíamos citar tantos outros exemplos, com as suas virtudes e os seus vícios, que têm vindo a materializar as primeiras experiências de Organizações Autónomas Descentralizadas (DAOs, na sigla inglesa).
Pode parecer contraintuitivo, mas este modelo traz potenciais oportunidades para as empresas: as bases de utilizadores passam a ser comunidades, em que cada um está implicado com o sucesso do projeto, pois desse depende também o sucesso do seu investimento. Isto cria um movimento de co-responsabilização entre empresas e os seus promotores.
Como tem vindo a ser objeto das reflexões que temos feito, o mundo continua a descrever uma rota de digitalização acentuada. Talvez prevendo, que nessa tendência, os futuros consumidores darão igual valor a deter ativos digitais e físicos, a Nike comprou em 2021 a RTFKT, um estúdio que cria ténis digitais, através da qual tem lançado coleções de ténis digitais, com o potencial para virem a ser usados no metaverso.
No entanto, a web 3.0, como tantas outras ondas tecnológicas anteriores, pode ser encarada com suspeição pela maior parte das empresas já estabelecidas. A coragem para experimentar pode representar uma grande vantagem competitiva, essencial no longo prazo. Várias empresas “tradicionais” têm dado pequenos passos neste sentido, desde pagamentos com moeda virtual, a integração de carteiras virtuais com o perfil de social media, e até edições exclusivas de colecionáveis digitais. São empresas que não mudaram radicalmente o seu modelo de negócio e operação, mas optaram por fazer experiências circunscritas nesta área (há até quem designe esta realidade intermédia como web 2.5), para testar novos modelos de receita, de relação com o mercado e de presença online.
Fundamentalmente, nesta nova economia digital, as empresas deixam de extrair atenção e valor dos seus utilizadores e dos seus dados, tornando-os co-proprietários dos seus serviços e do valor que geram. Na dimensão filosófica da web 3.0, tal ambição quer representar uma internet mais justa e democratizada, que deixa de estar nas mãos de poucos. Uma Internet mais igualitária no acesso e nas oportunidades. Esta é uma narrativa que tem vindo a ganhar força, mas que está ainda a dar os seus primeiros passos. Como tal, é terreno fértil para inovação disruptiva, para novas oportunidades, mas também para a replicação dos vícios inerentes à nossa condição humana: as fraudes, a plutocracia, o financiamento ilícito e toda a espécie de outras manifestações moral ou legalmente condenáveis.
Serão estas razões para cessar imediatamente as atividades desta nova indústria? Quanto a mim, julgo que não: é, sim, caso para continuarmos a refletir em conjunto sobre o que aprendemos nestes últimos 40 anos de internet, de maneira que esta terceira iteração da rede global que nos liga diariamente possa ser melhor.
Este texto trata-se de uma republicação de um artigo primeiramente publicado na revista Exame - leia o original aqui.