Quando, início dos anos 2000, comecei a trabalhar em empresas a dar workshops sobre temas comportamentais, como vendas e gestão de conflitos, foi-me dito que podia partilhar que era psicóloga, mas com um alerta: “Por favor não diga que é psicóloga clínica, porque as pessoas podem sentir-se desconfortáveis consigo”. Achei estranho porque fui treinada especificamente para deixar as pessoas confortáveis. Mas, na altura, o estigma acerca das doenças mentais, da psicoterapia e psiquiatria era muito forte. Sabemos que percorremos um longo caminho desde então, quando estamos agora a abordar o tema da saúde mental neste blog.
Sou psicóloga clínica, psicoterapeuta e também coach e trainer executiva. Tenho a perspetiva alargada da realidade organizacional e, simultaneamente, uma visão de perto da vida das pessoas. Foi por isso que quando se tornou claro para as organizações que era a altura de falar sobre saúde mental, vi a oportunidade para uma abordagem aberta e honesta que traga mudanças reais ou o risco de promover alguns webinars, comunicar que a saúde mental é a prioridade e ao mesmo tempo manter tudo na mesma.
Voltando ao início dos anos 2000, foi quando as empresas e as organizações em Portugal começaram a familiarizar-se com conceitos como Inteligência Emocional. Temos de ter presente que naquela altura um “bom líder” era definido por palavras como “frio”, “racional” e “invulnerável”. As coisas começavam a mudar e competências como autoconsciência emocional, autocontrolo, empatia e capacidade de comunicação estavam a tornar-se parte das culturas organizacionais. Por isso, legitimamente, começámos a questionar-nos: podemos falar sobre emoções no trabalho? Sobre medo, tristeza, frustração? Partilhar as nossas dificuldades? Pedir ajuda? A resposta deveria ter sido “sim”, mas em algum momento do caminho, o modelo de Inteligência Emocional baseado em ciência deu lugar ao “Movimento do Pensamento Positivo”, no qual não podíamos pedir ajuda ou falar sobre emoções negativas, porque a regra era “Only Good Vibes!!”. Isto significava que não podíamos partilhar algum problema sem correr o risco de ouvir: “Não me tragam problemas, apenas soluções!”. Ou partilhar alguma dificuldade sem arriscar ouvir: “Estás a ser negativa!” ou “Não sejas tóxico!”. Outro conjunto de ideias inspiracionais que eram muito comuns: “Não há limites!”, “Não há impossíveis!” ou “O céu é o limite!”. Este tipo particular de crenças é muito frequente em pessoas propensas ao burnout, exatamente porque não têm barreiras internas e continuam a levar-se ao limite até ficarem exaustos ou esgotados. Hoje apelidamos o fenómeno de Positividade Tóxica e sabemos que nem sequer é neutro para a saúde mental, é prejudicial. Carrega a ilusão de que tudo está sob o nosso controlo. Não está. E que é possível “resolver as nossas vidas” de forma a livrarmo-nos dos pensamentos negativos e das emoções aversivas de uma vez por todas. Não conseguimos. O que podemos e devemos fazer é melhorar a nossa autoconsciência e literacia emocional, para que possamos ser capazes de gerir os nossos esforços e os nossos recursos de uma forma mais sustentável. Claro que é mais apelativo ter uma resposta simples para um problema complexo. Mais apelativo, mas menos eficaz. A realidade está aqui para nos mostrar que o movimento do pensamento positivo não ajudou a sociedade, a educação ou os locais de trabalho a tornarem-se mais saudáveis, senão não estaríamos a enfrentar uma crise de saúde mental, entre outros fatores, após duas décadas de florescimento da indústria da autoajuda.
Temos o problema e temos a oportunidade de começar a fazer algo diferente, mas por onde devemos começar?
Do meu ponto de vista, a primeira coisa a fazer não é ensinar não-profissionais de saúde mental a identificar os primeiros sinais de doenças mentais e, especialmente, não ensinar não-profissionais a fazerem pseudo-diagnósticos. Por duas razões:
A primeira é porque ainda ouvimos nos open spaces das locais de trabalho expressões como “É histérica…”, “Parece mesmo bipolar!” ou “Será que tomou os comprimidos hoje...?”. Não podemos usar diagnósticos como insultos às segundas e quartas-feiras e às terças e quintas convencer as pessoas a partilharem abertamente os seus sintomas. Os nossos esforços devem dirigir-se para a criação de um ambiente psicologicamente seguro, (nas palavras de Amy Edmondson) e só nesse momento é que as pessoas se sentirão confortáveis a partilharem as suas vulnerabilidades e a pedirem ajuda.
A segunda razão prende-se com a ideia de perceber os supostos primeiros sinais de doença mental. É importante perceber que estes são os primeiros sinais do fim da linha: há um continuum entre o bem-estar, passando pelo stress psicológico até se tornar numa doença mental. Ninguém fica doente de um dia para o outro. O que o local de trabalho deve ser é um lugar no qual o bem-estar é consistentemente promovido, mesmo (ou até mais) em ambientes de alta performance. Isto significa uma alteração na cultura, para que as pessoas não se sintam continuamente stressadas, não tenham uma sobrecarga crónica de tarefas e não sejam geridas por líderes que, no final do dia, com as suas ações, continuam a alimentar emoções como medo e vergonha enquanto promovem webinars sobre saúde mental.
No meu trabalho com empresas, perguntam-me frequentemente “Como podemos evitar que as pessoas se tornem cínicas sobre as nossas intenções quando estamos a abordar a saúde mental no trabalho?”. A minha resposta é que o cinismo é uma resposta adaptativa para que as pessoas não se sintam enganadas novamente. A única forma de evitá-lo é ser consistente e fazer o que se apregoa. O que acontece se investirmos em dois pilares: a promoção de uma cultura psicológica segura e investir na integração entre a vida e o trabalho. Quando falo desta integração não estou a referir-me a ginásios, mesas de ping pong e infantários dentro das empresas. Refiro-me à impossibilidade de trabalhar entre 10 a 12 horas por dia, durante cinco ou seis dias por semana, por rotina e, simultaneamente, ter uma vida rica em todos os outros domínios: família, amigos e tempo pessoal. Não há milagres, algo tem mesmo de mudar.