Cenário familiar. 

Os dias perdem o nome (“É terça-feira? Ou quinta?”). O alarme é cada vez mais pesado. O trânsito tira-nos anos de vida. "Amanhã treino", “Amanhã ligo àquela pessoa”, “Para o mês tiro férias.” 

Demasiados de nós normalizam a sua própria exaustão (e, consequentemente, a dos outros) sem saber como viemos do Natal do ano passado para o deste - ou como chegámos a casa. Ao final do dia, descontamos no cão, no jantar que queimou, nas nossas pessoas, e ficamos mais chateados ainda com a nossa falta de controlo - como se adicionássemos culpa à raiva (afinal, tão natural) que sentimos. Mas de onde vem, afinal, essa raiva? Do trânsito, que aciona toda a nossa claustrofobia? Do trabalho, das pessoas? Do deadline que se aproxima como um pesadelo?

Simultaneamente, o tempo para nutrir o que nos entusiasma e o que nos cura escasseia. 

Um dia, damos por nós surpreendidos que as coisas mais simples sejam fonte de gigantesca irritação - mas chegamos com um sorriso forçado a todo o lado. Ligamos o piloto automático e seguimos, ignorando tudo o que cá dentro possa ser “muito”. É, afinal de contas, inegável que nós somos um produto do que sentimos e pensamos - mesmo do que tentamos esconder. 

Algures, vindo de alguém, surge a pergunta: “Já experimentaste escrever sobre isso?

“Escrever um diário? Não era algo que fazíamos na adolescência? Escrevo pensamentos ou memórias? A reflexão do dia, ou da semana? É para me sentir melhor? É para ser criativo? Ou escrever sem regras ou razões?” 

É, é isso tudo. O journaling - também conhecido como "escrita terapêutica" ou "escrita reflexiva" - é a prática de escrever regularmente,  envolvendo a expressão de pensamentos, sentimentos, experiências e reflexões pessoais. Podendo ir desde a simples descrição do dia a dia até a exploração de emoções profundas, metas pessoais, gratidão e autoconhecimento,  o journaling é um poderoso e já conhecido aliado na área da saúde mental e bem-estar. 

O meu caminho pessoal com journaling tem invariavelmente contribuído para a minha evolução. Expressar abertamente as emoções negativas no papel deu-me a oportunidade de explorar as suas origens. Consegui, de forma gradual, crescente e contínua, entender melhor porque certas situações ou reações que para outros seriam inócuas, para mim seriam motivo de extremo desconforto. Esse exercício de auto-análise foi crucial para encontrar soluções construtivas e aprender a lidar com os desafios de uma forma mais saudável. 

Não tenhamos ilusões - acesso a terapia é necessário, urgente e insubstituível, bem como priorizar família, amigos e saúde física. 

Mas vivemos num mundo onde pedir ajuda é ainda considerado, no mínimo, inconveniente, e onde nem todos temos os recursos ou o apoio emocional para efetivar essa decisão. Como agravante, estamos rodeados de plataformas cujo objetivo é comunicação e entretenimento - sem que as nossas próprias capacidades para nos expressarmos tenham melhorado. Pior - e o tempo para isso?

Sim, na nossa mente e alma existem raiva, medo, e angústia. Sentimentos por vezes diários, mas altamente inconvenientes face à necessidade de alta produtividade diária. Sendo a dormência um escape mais indolor, os reels e tik-toks tornam-se na pausa entre reuniões, o embalar na almofada e a companhia do café, de manhã. Quem nunca?

Não sentir a frustração de mais um projeto falhado ou o peso de uma memória ativada por um trigger inocente, não faz de nós mais produtivos. O que faz é deixar-nos entorpecidos e vazios de identidade. Por conseguinte, previne que a coragem e a adrenalina desvaneçam. 

Por outro lado, o otimismo artificial que é frequentemente alimentado em nome de um bem-estar coletivo forçado, poderá possivelmente cimentar a inadequação e desconhecimento de algumas mentes brilhantes. 

Sentir o que é negativo, na sua totalidade, é coragem. E a coragem é um músculo. E é disso que precisam famílias, empresas e ideias. Se não sentimos, não nos importamos. Se não nos importamos, não avançamos. E não contribuímos com o que de melhor temos a acrescentar. 

Na mesma linha, o journaling pode ser também uma ferramenta eficaz para resolver problemas e tomar decisões. Ao escrever sobre um desafio ou dilema, a análise será mais objetiva e racional, permitindo a criação de possíveis soluções.

Paralelamente, o journaling tem-se revelado uma ajuda preciosa no desenvolvimento da resiliência, da disciplina e da empatia. Em diferentes períodos da minha vida, particularmente desafiantes ou cinzentos, aquelas linhas no caderno tinham como objetivo descobrir momentos de beleza, motivos para gratidão. Nem sempre é fácil, e muitas vezes ficamos parados de lápis na mão, sem motivo aparente. São segundos (ou minutos) aterradores - mas necessários. 

“Como é que começo?”

Pelo básico.

“A minha colega notou que eu estava cansada. Levou-me café. Impediu um ataque de choro que arruinaria o resto do meu dia.”

“Estamos todos exaustos no escritório. Mas sinto-nos mais unidos.” 

É através desse hábito que acontece a reprogramação no nosso cérebro, que se descobre mais momentos e mais motivos, fomentando assim a nossa capacidade de resiliência, de entreajuda, de ver a cor que sempre existiu para lá da lente cinzenta que fomos deixando ficar.

“Mas eu não escrevo muito bem.” 

The late, great Sir Ken Robinson dizia que “Creativity is as important as literacy, as we should treat it as such” [“A criatividade é tão importante quanto a literacia, por isso devemos tratá-la como tal”]. Desenhar sem regras, dançar como se ninguém estivesse a ver, e escrever só porque sinto. 

Podemos e devemos levar a arte mais longe se assim o desejarmos, mas manter ferramentas criativas na nossa vida - sem a ambição de as tornar rentáveis -  é de importância crucial para para o nosso crescimento pessoal, académico e profissional

Embora esteja bastante associada à saúde mental e bem-estar, a escrita diária ou semanal pode ser adaptada e transformada, não só pelo lugar onde nos encontramos, mas também onde queremos ir a estar no futuro.

É irrefutável que exercícios de gratidão permitem desenvolver resiliência e reduzir a ansiedade; existem inúmeros estudos e artigos na área da psicoterapia que o comprovam.

E se fizermos uma lista das boas ideias que tivemos nesse dia ou nessa semana, independentemente do facto de as colocarmos em prática? Não trabalhará a capacidade de desenvolver soluções?

Se durante a hora de almoço, escrevermos sobre o que admiramos no nosso colega, no nosso líder, não servirá como impulsionador para o resto do dia?

Se começarmos por tirar cinco minutos para escrever o que de bom ou mau saia da nossa mente (libertando-nos de regras gramaticais e ideias pré-concebidas), isso não será, no mínimo, uma forma intencional e consciente de começar o dia connosco mesmos?

Isto tudo, além do muito evidente - o estímulo do nosso cognitivo, do pensamento crítico e da reflexão. Basta começarmos todos os dias com “E se…?”

____

Um dos meus objetivos mais estimados é a promoção dos benefícios que a prática do journaling pode trazer. Tive o privilégio de descobrir que, independentemente do quão árida a nossa mente nos possa parecer, nunca é o fim. É sempre emoção, é sempre arte, é sempre um capítulo novo - já cantava Nina Simone.

O journaling não é apenas uma prática terapêutica e criativa - é uma ferramenta subtilmente transformadora. Se reconhecemos o valor da palavra no meio académico, científico e até no entretenimento, não o deveríamos subestimar enquanto catalisador de mudança pessoal. É uma das ferramentas mais úteis para uma mente clara, e por conseguinte, uma vida mais equilibrada com pensamentos e passos mais precisos. Adicionalmente, se colocar memórias e experiências em papel leva à reflexão e reconhecimento de padrões - isto fará de nós, indubitavelmente, melhores pessoas, colegas e líderes

Da mesma forma que o exercício físico e a alimentação são o estandarte da preservação e fortalecimento do nosso corpo, devemos também privilegiar o que pode impulsionar a nossa criatividade e o auto-conhecimento; não só por nós mesmos, mas pelo ambiente que nos rodeia e pelo que queremos ser, cumprir e contribuir.

A criatividade permite-nos chegar a soluções, levar projetos a bom porto e fazer do futuro uma realidade. O auto-conhecimento traz-nos, entre outros presentes, empatia, perspicácia e agilidade de comunicação

Não seríamos todos melhores colegas, melhores profissionais, melhores pessoas, ao desenvolvermos esses traços, tão inerentemente humanos?

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Publicado em 
1/2/2024
 na área de 
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