E se, no futuro, não houver diferença entre virtual e real?

Neste artigo exploro, brevemente, este cenário possível e algumas das suas implicações em termos de (ciber)segurança. Cenários são narrativas de ambientes alternativos nos quais as decisões de hoje poderão vir a ser implementadas . Não são previsões nem estratégias. São futuros alternativos, descrições de contextos estratégicos futuros que estimulam a nossa imaginação e podem ajudar-nos a estar mais bem preparados para o futuro e a tomar decisões mais robustas no presente.

Imaginemos, então, que a ideia de ciberespaço não terá futuro a médio/longo prazo. Que desaparecerá como conceito. Imaginemos que, ao tornar-se universal, o virtual se diluirá no real, e que toda a nossa experiência sensorial se passará a realizar num ambiente uno e indistinguível.

Hoje ainda percebemos claramente as diferenças entre espaço (não cibernético) e ciberespaço. Ainda ligamos o computador para entrar na internet, ou clicamos numa ligação ou numa aplicação no telemóvel ou noutro suporte qualquer. Ainda conseguimos perceber, na maior parte das vezes, o momento em que “entramos” no ciberespaço. E quando lá estamos sabemos, a maior parte das vezes, que estamos lá. Ainda percebemos a diferença entre entrar numa repartição bancária ou entrar no website do banco, entre entrar no Centro Comercial Colombo e entrar no website da Amazon.

No entanto, já há muitos sinais de que esta distinção, esta perceção da diferença entre ciberespaço e espaço (não cibernético) se está a esbater. Para todos nós, para os nossos sentidos, será cada vez mais difícil distinguir o real do virtual, o objeto físico do holograma. A algoritmização, a realidade aumentada e a realidade virtual, associadas à aceleração exponencial da velocidade de computação, estão a transformar rapidamente a forma como vivemos. Mais do que estarmos sempre ligados (que implicaria a possibilidade, apesar de tudo, de desligar), estamos sempre “lá dentro”. Se não for possível distinguir o “real” do “virtual”, fará sentido tentar sequer discutir a diferença entre um e outro?

Longe vão os tempos em que era “só” o Instagram a substituir a fotografia em papel, o Airbnb a revolucionar o mundo do turismo ou a Uber a inquietar milhares de operadores de táxis espalhados pelo mundo. O acesso à informação é cada vez mais imediato e integrado (embedded). Sistemas de realidade artificial ou aumentada como os da Reality Labs / Oculus (Facebook), o Microsoft HoloLens, o Google Cardboard ou o Magic Leap são exemplos de tecnologias e plataformas que transformam a nossa perceção do mundo e as interações de que é composto. Estou também a pensar em novas formas de exploração da realidade virtual desenvolvidas a partir dessas estruturas, como a Fearless (para combater os nossos medos através de doses crescentes de realidade virtual…), os projetos dos Lowe’s Innovation Labs (para experienciarmos mudanças em casa, aprendermos a fazer pequenas obras, etc.), a Neuro Rehab VR (reabilitação / fisioterapia), a ClassVR (educação) ou o quase infinito mundo do gaming imersivo (ver, por exemplo, o desporto de realidade aumentada HADO). Para perceber melhor o que já está a acontecer, imagine que está à mesa e tem duas chávenas de café à frente. O desafio (sem tocar e sem cheirar, para já) é escolher qual a verdadeira. E imagine que, olhando com toda a atenção, é impossível notar qualquer diferença. É esse o mundo em que iremos viver. E não será daqui a muito tempo. E daqui a um pouco mais de tempo poderemos sentir a chávena virtual (com umas luvas ou pequenos adesivos nas mãos ou através de campos magnéticos), “cheirá-la” (através da representação de odores que acionam o nosso olfato) e talvez mesmo “bebê-la” (quando levarmos a chávena à boca teremos a exata perceção de que estamos a beber o seu conteúdo, sabor incluído).

Voltando à minha primeira hipótese. Chegará o dia em que tentar fazer a distinção entre “real” e “virtual” será impossível e anacrónico. Tudo será real, igualmente real.

Neste cenário, a médio/longo prazo, falar de cibersegurança será idêntico a falar “apenas” de segurança, com algumas diferenças significativas face ao mundo de hoje. Alguns exemplos:

1) Ataques relacionados com a Internet-of-Things serão muitíssimo comuns. A capacidade de lhes dar resposta fará parte das tarefas correntes de segurança pública.

2) A visibilidade e o impacto dos ataques virtuais crescerão exponencialmente, acelerada não só pela generalização dos carros autónomos, como também pela expansão do multiverso e do valor dos inventários virtuais (só a título de exemplo, há skins no Counter-Strike que custam bem acima dos 100 mil Euros), bem como pela expansão das criptomoedas;

3) A prevalência de deep fakes e a fluidez e fragmentação de identidades exigirão mecanismos de certificação com o mesmo nível de segurança que hoje, apesar de tudo, temos nas transações financeiras. Os atuais zoombombers tentarão entrar, literalmente, pela nossa casa adentro.

4) A redundância será chave. Não só em sistemas tradicionalmente críticos (saúde, transportes, energia, finanças, defesa, etc.), mas também em sistemas que tradicionalmente não são considerados críticos, como por exemplo a habitação ou a educação. Esta expansão da criticidade dos sistemas e das necessidades de disaster recovery parece levar, quase inevitavelmente, a uma sociedade com maior prevalência de riscos, mais securitária e com maior foco na prevenção. Não estaremos no mundo do Minority Report do Steven Spielberg e do Tom Cruise (pelo menos nas questões criminais), mas poderemos estar perto.

5) A responsabilização apresentará novos desafios: quem é responsável por um crime (ou acidente) diretamente ligado a um sistema de machine learning? Talvez quem o desenvolveu, mas e se foi um algoritmo? Talvez quem o “treinou/ensinou/forneceu os dados”, mas e se foi o próprio sistema? Talvez quem o operou, mas e se ninguém o operava ou detinha? Questões semelhantes colocam-se hoje em relação à condução autónoma. Quem é responsável por acidentes? Como decide o algoritmo em caso de riscos conflituantes entre ocupantes do veículo e pessoas na via pública? As respostas a estas questões – e a outras em que algoritmos agem por sua conta - terão de ser encontradas pela sociedade, pela regulação, pelos tribunais, ou mesmo por outros algoritmos. 

6) Os riscos serão “menos simpáticos”. Com a aceleração exponencial da inovação nos ataques, muitos passarão a ser “singulares”, isto é, estruturalmente diferentes de vagas de ataques anteriores (no método, na tecnologia, nos alvos). Essa singularidade dos ataques transforma os riscos em incertezas estruturais, em que as respetivas probabilidades não são objetivas, pois não são “fornecidas” pelo facto do acontecimento se repetir sucessivamente, o que dificultará a sua integração em processos de tomada de decisão e de cobertura de risco. 

Considero que o cenário descrito em cima é possível, mas não predeterminado, nem necessariamente o mais plausível dos cenários possíveis. Seria, com certeza, um mundo completamente novo e, talvez, “admirável”. Mas, apesar de ser imaginável, é muito difícil avaliar as suas qualidades e defeitos com os olhos da atualidade. Também o nosso mundo seria brutalmente assustador para os nossos bisavós ou avós nascidos na transição do século XIX para o século XX. Para uma grande parte dessa geração, até o motor a combustão dos automóveis ou o carro elétrico eram ferramentas diabólicas. Imagine a estupefação que teria provocado a internet ou a realidade aumentada. Parte do futuro ainda não está escrito, será contruído por nós. E é por isso mesmo que vale a pena explorá-lo no presente, visualizar as consequências possíveis das opções que fazemos hoje e prepararmo-nos melhor. Virtual e realmente.

Este artigo integra-se no ciclo anual de reflexão sobre tecnologia, negócio e sustentabilidade do Nova SBE Digital Experience Lab, no mês dedicado à cibersegurança, no qual nos estamos a debruçar sobre o impacto que a cibersegurança tem nos negócios, na sociedade e no nosso futuro. Junte-se a nós no dia 17 para refletir sobre a privacidade de dados e no dia 24 sobre a cibersegurança.

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[1] Ogilvy, Jay, and Peter Schwartz. “Plotting Your Scenarios.” GBN. 2004.

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Publicado em 
7/10/2022
 na área de 
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