facto de algumas empresas procurarem replicar em ambiente virtual as práticas informais do escritório é, paradoxalmente, elucidativo. Por exemplo, Anne Sheenan, diretora da Vodafone Business UK (Reino Unido) criou o programa “Sandwich with Anne”: duas vezes por semana convida 12 empregados de diferentes áreas: estas pessoas recebem em casa um almoço de sanduíches e, à uma da tarde, juntam-se para almoçar e conversar online durante uma hora. A ideia é formulada por Alexandra Monteiro, da OutSystems, como significando que “distante não significa separado”. Chefias desta empresa enviaram para casa dos colaboradores, em momentos chave de trabalho, presentes acompanhados de mensagens de agradecimento.
Terá a pandemia dado início ao fim do escritório? O Financial Times chegou a escrever um bem-humorado obituário ao escritório. A revista The Economist explicou que muitos escritórios são geridos como “relíquias do passado”. O humor é, porventura, o modo apropriado de lidar com essa adivinhação. A notícia da morte do escritório é manifestamente exagerada, embora algumas notícias sejam mais exageradas do que outras. A revista The Economist dava conta, em 12 de setembro de 2020, que 84% dos trabalhadores de escritório em França, mas “apenas” 40% no Reino Unido, estavam a regressar às suas secretárias. Jack Dorsey, o líder do Twitter, anunciou que os seus trabalhadores poderiam trabalhar a partir de casa “para sempre” – mas Reed Hastings, o fundador da Netflix, afirmou que não via nada positivo nesse formato. Hastings acrescentou que a impossibilidade de interagir cara-a-cara com outros trabalhadores é uma fonte de problemas e de sacrifícios – e vaticinou que a semana de trabalho do futuro incluiria quatro dias no escritório e um dia de trabalho remoto. Uma cultura, como a da Neflix, fortemente dependente da troca de ideias pode ser particularmente sensível a tudo o que complica essa troca. A Bloomberg ofereceu um acrescento de 75 euros diários visando trazer os seus trabalhadores de volta aos escritórios em Londres.
O Modelo Híbrido
O mais provável é que, doravante, algumas profissões passarão a trabalhar a partir de casa, pelo menos durante parte dos dias da semana. Nicholas Bloom argumenta que, depois de ser uma prática estigmatizada (por vezes jocosamente referida como “shirking from home” em vez de “working from home”), trabalhar a partir de casa um a três dias por semana será normal. Evidência experimental anterior, aliás, já revelava os benefícios de trabalhar de forma mais flexível e a partir de casa. A raridade da experiência tornava-a “estranha”, mas a pandemia normalizou-a e poderá precipitar a adoção de novos designs. Um bom mote para o futuro poderá ser o adotado pela OutSystems junto dos empregados: “O que funciona para ti funciona para a OutSystems”.
No futuro, tal como já acontece no presente, alguns profissionais trabalharão exclusivamente a partir de casa (ou de espaços de coworking), e responderão a clientes instalados em qualquer parte do planeta. Organizações concederão aos trabalhadores a possibilidade de escolherem, sob algumas condições, o formato preferido. Ocorra o que ocorrer, a pandemia mostrou que muitas atividades podem ser levadas a cabo em regime de teletrabalho – evitando deslocações e os desconfortos a elas associados, e melhorando a qualidade ambiental.
Em vez de romantizar as possibilidades, até porque novas formas de autonomia coexistirão com emergentes expressões de controlo, façamos uma reflexão sobre os prós e os contras do teletrabalho. Sobre o que aprendeu com a crise, Paulo Pereira da Silva, líder da Renova, afirmou:
“Muitas coisas podem ser feitas a partir de casa. Passámos todos a trabalhar nas redes exteriores e não houve quaisquer problemas de segurança da informação. Mas há uma coisa que acho que não funciona fora: as ideias novas e a inovação. Muitas das novas ideias têm a ver com conversas informais, por exemplo, quando estamos juntos a tomar café. É difícil gerá-las através do Zoom ou do Teams”.
Novos modelos de trabalho, mais flexíveis e geograficamente distribuídos, estavam a ser testados antes da pandemia – a pandemia terá vindo a acelerá-los. A equipa de gestão de topo da Kodak, por exemplo, trabalha em diversas cidades: o que conta é o que se passa no mercado, não o que acontece em Rochester (a sede da companhia falida, atualmente em reinvenção). Mas as vantagens do teletrabalho e das reuniões à distância coexistem com diversas desvantagens. O conhecimento tácito, que se constrói no dia-a-dia, entre colegas que trabalham juntos, poderá ser negativamente afetado. A criação de uma identidade coletiva também ficará dificultada. O simples uso do humor fica severamente debilitado: entre o timing de uma graça e a ativação do som numa reunião digital, o momento da graça já ficou para trás.
Ademais, as empresas poderão indevidamente tirar partido das possibilidades excecionais criadas para obterem vantagens fiscais, mesmo que isso prejudique os trabalhadores e o Estado. Poderá tratar-se daquilo a que Francisco Louçã chamou uma “feroz revolução conservadora” – ou simplesmente o aproveitamento oportunista da situação. É igualmente possível que algumas empresas, dando-se conta da economia de custos que pode ser alcançada com a redução dos espaços para escritórios, forcem trabalhadores a operar em casa e os submetam ao cibercontrolo. Daqui podem resultar novos desequilíbrios – pois nem todas as pessoas dispõem de condições dignas em casa. Em suma: há riscos de o conflito trabalho-família se transformar numa invasão da família pelo trabalho.
Enquanto as organizações não forem plataformas de trabalhadores freelancers independentes (uma possibilidade desejada por alguns, mas altamente problemática do ponto de vista da saúde dos indivíduos e das sociedades), criar espírito de equipa com “jolas virtuais” (expressão usada por um participante num programa de formação) parece pouco eficaz. É mediante a conversa cara-a-cara e a partilha de momentos informais que se enriquece o tecido social, se fomenta uma cultura partilhada e, desse modo, se estimula a criatividade. Sem a máquina do café à volta da qual as pessoas se congregam, muitas boas ideias não floresceriam. Sem estas interações informais, a organização perde riqueza criativa e capital psicológico, e a confiança que nutre a resiliência não floresce.
Do exposto se compreender que a existência de escritórios e de outros espaços físicos de interação nas organizações não tem que ser um empecilho ao teletrabalho – nem o inverso. Portanto, é possível que os modelos híbridos se tornem mais comuns e que mais profissionais se transformem em “trabalhadores híbridos”. A mudança conduzirá designers e arquitetos a procurar novas soluções para espaços (em casa e no trabalho) mais favoráveis ao novo normal: mais preparados para trabalho remoto, mais promotores da saúde e do conforto. Mas reitere-se: os riscos são significativos.
A legislação terá também que ser ajustada a essa nova realidade, pois alguns desafios idiossincráticos emergem do trabalho em casa. Por exemplo, podem as empresas monitorizar os trabalhadores remotamente – e em que condições? Sobre quem recai a responsabilidade por um acidente ocorrido em casa durante a execução do trabalho? A quem pertence o equipamento usado no teletrabalho? Deverão as empresas recompensar os trabalhadores pelo uso do espaço doméstico para trabalhar?
Excerto do livro da autoria de Miguel Pina e Cunha e Arménio Rego - Liderar no Novo Normal
Referências
[1] Kellaway (2020)
[1] Gratton (2020)
[1] Monteiro (2020)
[1] Mance (2020)
[1] The Economist (2020n)
[1] The Economist (2020k)