É fundamental praticarmos a nossa capacidade de escrita e continuarmos a escrever as nossas ideias em frases e parágrafos completos, para mantermos vivas as nossas competências analíticas e criativas.

A escrita é uma competência crítica hoje e continuará a ser no futuro. Consigo imaginar-vos a franzir o sobrolho ou a encolher os ombros enquanto leem este texto, pensando que se trata novamente de uma daquelas afirmações ultrapassadas dita por uma académica. Aliás, num mundo em que se pensa que uma imagem vale mais do que mil palavras, em que os grandes pensamentos devem caber num tweet de 280 caracteres e em que poucas pessoas estão dispostas a ler mais de duas páginas sobre um determinado tópico, escrever parece mais uma competência obsoleta do que essencial. No entanto, num mundo pós-covid, onde o trabalho é híbrido e cada vez mais distribuído, a escrita está em todo o lado e todos têm de escrever. A documentação e a escrita colaborativa com pessoas que talvez não se conheçam, ou que não se vejam, está a tornar-se uma prática de trabalho essencial.

Quando falo de escrever, não me refiro apenas à caligrafia. Refiro-me, em termos gerais, ao ato de comunicar pensamentos ou sentimentos utilizando um conjunto de símbolos num suporte visual – do papiro e da tábua de argila ao papel e, agora, aos meios digitais. A escrita permite a articulação de pensamentos pormenorizados e complexos, e apoia tanto o pensamento criativo individual como as colaborações criativas. Em 2004, Jeff Bezos, na altura Diretor Executivo da Amazon, partilhou uma perspetiva semelhante quando pediu aos colaboradores que abandonassem o PowerPoint para apresentarem novas ideias. Em vez disso, pediu-lhes para escrever um memorando narrativo de 6 páginas antes das reuniões executivas, pois para Bezos a escrita era essencial para desenvolver um “pensamento claro”.

Mais tarde, no seu livro de 2021, Working Backwards, Bill Carr e Colin Bryar, executivos de longa data da Amazon, argumentaram que os memorandos escritos nos permitem desenvolver narrativas multicausais, com uma perspetiva mais abrangente sobre um tópico. Além disso, uma vez escritos, os memorandos podem ser partilhados e lidos antes das reuniões, permitindo que os participantes, quer concordem ou não, se envolvam numa discussão baseada em provas. A Amazon é uma entre muitas empresas conhecidas pelas suas culturas de escrita intensa: Stripe, Basecamp, Google, Facebook, Intel e outros gigantes tecnológicos também fizeram da escrita uma prática organizacional fundamental.

Curiosamente, estas decisões organizacionais refletem conhecimentos científicos importantes. O desenvolvimento da escrita está associado a duas mudanças paralelas e dramáticas. Historicamente, a invenção da escrita na civilização humana teve um impacto significativo: a matemática, a ciência, a filosofia e a literatura foram todas baseadas na capacidade de escrever, tal como os sistemas jurídicos e as grandes sociedades organizadas. Ao mesmo tempo, a escrita alterou o cérebro humano e libertou a criatividade. A psicóloga cognitiva Maryanne Wolf, por exemplo, mostrou que o desenvolvimento da escrita e da leitura criou novos circuitos no cérebro que serviram de base para o pensamento analítico e a reflexividade, bem como para as capacidades criativas associadas.

Apesar de todas estas evidências, e face às enormes pressões para produzir inovação de forma rápida e eficaz, os gestores têm apontado a diminuição da capacidade das pessoas para “escrever”, ou seja, para desenvolver argumentos claros e completos. Nas minhas experiências de ensino, tenho vindo a constatar (juntamente com vários colegas) que os alunos têm dificuldade em articular ideias complexas, e em apresentar argumentos robustos e persuasivos. Estes testemunhos são corroborados por estudos recentes de psicólogos e neurocientistas. Se os nossos cérebros estão a melhorar as capacidades visuais e espaciais, como a navegação, o ‘scanning’ e o ‘multitasking’, em troca vemos um enfraquecimento do processamento profundo que está na base da análise indutiva, da reflexão e da imaginação. Estas conclusões são particularmente relevantes numa altura em que as organizações anseiam por inovação e em que a nossa sociedade enfrenta desafios ambientais e sociais complexos. De facto, agora mais do que nunca, precisamos de pensadores criativos e críticos, capazes de desenvolver soluções inovadoras e significativas.

Mas estimular o nosso pensamento criativo e crítico não significa abandonar as tecnologias digitais e simplesmente voltar ao lápis e ao papel. É, sim, fundamental praticarmos a nossa capacidade de escrita e continuarmos a escrever as nossas ideias em frases e parágrafos completos, para mantermos vivas as nossas competências analíticas e criativas. Isto é particularmente importante com o surgimento da IA generativa: se quisermos tirar o máximo potencial destas tecnologias, temos de ser capazes de as utilizar de forma sensata e de nos envolvermos com o conteúdo de forma crítica e criativa. No final do dia, como qualquer tecnologia, a IA generativa existe para amplificar as nossas capacidades, mas devemos continuar a ser donos do nosso pensamento humano.

Este texto trata-se de uma republicação de um artigo publicado no Observador - leia o original aqui.

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Publicado em 
19/12/2023
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