Nuno da Silva Vieira acredita que as sociedades de advogados têm na transformação digital uma oportunidade para prestar serviços jurídicos mais seguros, eficientes e centrados no cliente.
(Este artigo trata-se de uma republicação de uma entrevista de Nuno da Silva Vieira ao Jornal Económico, publicada a 16 de julho de 2021)

O advogado Nuno da Silva Vieira, sócio da Antas da Cunha Ecija & Associados, tem sido um dos principais proponentes da digitalização do sector em Portugal. Em entrevista, fala dos desafios e oportunidades que a digitalização coloca às sociedades de advogados e ao sector da Justiça como um todo. 

O sector da advocacia é muitas vezes visto como tradicionalista e avesso à mudança. Acredita que a pandemia abalou este estado de coisas e acelerou a digitalização do sector? 

A pandemia veio expor as necessidades de todas as indústrias. As profissões jurídicas – que, até então, escapavam aos impactos da tecnologia – desta vez também tiveram que se adaptar. Todos nós queríamos estar perto dos nossos clientes e, se os meios tecnológicos o permitiam, não havia lugar para hesitações. 

De facto, tratou-se de um abanão nas prioridades de investimento dos escritórios de advogados, mas também pode não ter passado disso. Temos de ser pragmáticos. Resta saber se esse abanão significou uma verdadeira mudança na cultura dos escritórios e se haverá uma certa consistência nessa transformação digital. Uma sociedade de advogados não entra na era digital apenas porque usa mecanismos telemáticos para reunir com os seus clientes. 

Os advogados têm de enfrentar os novos desafios e um deles vem mesmo do lado dos clientes, que são cada vez mais digitais. Falta redefinir a jornada destes novos clientes, muito sofisticados, mais exigentes na hora de fidelizar, e muito indisponíveis na gestão do seu próprio tempo. 

Revisite-se o anúncio do Banco Central Europeu, no dia de ontem, sobre o lançamento do euro digital. Quando os clientes dos escritórios de advogados fizerem negócios com este tipo de moeda criptografada, os advogados já terão de possuir um domínio absoluto sobre distributed ledger technology, ou DLT, entender, elaborar e interpretar um Smart Contract, compreender o conceito de agente de Software ou estar preparados para a emissão de um security token


Qual é o grande desafio de uma sociedade de advogados que se quer inovadora? Adotar as tecnologias certas? Criar uma cultura de inovação? Captar e reter o talento humano necessário? 

Estudos da Gartner confirmam que a disrupção digital é a função mais importante para as empresas, seguida, imediatamente, pela necessidade de encontrar talentos que descubram novas formas de apresentar serviços aos clientes. Por isso, a transformação digital apresenta-se como uma oportunidade para os advogados entregarem serviços jurídicos mais seguros, eficientes e centrados no cliente - com base em soluções tecnológicas que os clientes entendam. Mas a promessa tem que ser cumprida. Porque, se não se entregar o que se promete, o cliente da era digital não irá hesitar na procura de alternativas. 

Um estudo da McKinsey & Co., mostra-nos que as organizações que passaram por uma transformação digital têm “23 vezes mais probabilidade de adquirir clientes, 6% mais probabilidade de reter clientes e 19 vezes mais probabilidade de serem lucrativas”. Nesse contexto, os profissionais deverão estar cientes da necessidade - e adoção imediata - de estratégias relativas à transformação digital, sob pena de fracassarem. 

As sociedades de advogados devem estar atentas e devem fazer um exercício de cenarização, onde a gestão dos talentos, o treino dos advogados, as novas habilidades, as novas ferramentas e a requalificação serão primordiais. Depois devem partir do princípio de que a quarta revolução industrial é fundacional. Estão a ser criados novos ecossistemas – muitas vezes autorregulados – e aqui estaremos perante areia muito movediça. 

No caso particular das sociedades de advogados o tema ainda ganha uma dimensão maior quando olhamos para o seu tipo de negócio. Têm de se transformar, mas também têm de entender e dominar a transformação dos seus clientes. Por isso, num mundo em que o 5G vai trazer novas potencialidades tecnológicas, em que a realidade virtual fará parte do nosso dia-a-dia e onde a informação duplica em frações de tempo cada vez mais curtas, não se pode ficar parado.


Para os cidadãos e as empresas, quais os benefícios da revolução tecnológica em curso no mundo do direito e da advocacia? 

Para os cidadãos é uma coisa extraordinária. Para as empresas são oportunidades que não surgem todos os dias. Muitas vezes dou por mim a pensar na sorte que tenho por poder ser advogado em plena quarta revolução industrial. É uma época de ouro para os advogados e, quem ainda não percebeu, que me dê o benefício da dúvida e tente descobrir por si. Ainda estes dias falava com um ilustre professor português – que os leitores do JE bem conhecem – acerca de ecossistemas com a sua própria constituição e com as suas regras de funcionamento. É fascinante como a tecnologia se encaminha para devolver o poder às pessoas – a mesma tecnologia de quem já desconfiamos muito. E repare-se na força que a tecnologia entrega aos nossos empreendedores que são, por sinal, os empresários de amanhã. No seguimento deste raciocínio, observem-se as oportunidades para os jovens advogados que, pela primeira vez, em muitas décadas, podem aspirar a lugares de destaque, muito bem remunerados. Em Londres já se nota isto que acabo de referir. As grandes firmas já aceitam pagar 100 mil libras por ano a um estagiário que – se me permitem a definição – seja um potencial advogado híbrido. Nós somos a geração que chegará a Marte. Podemos contemplar a nossa advocacia dos anos 80, mas, em plena quarta revolução industrial, nem a mesa da sala de reuniões estará atualizada.

De que formas se perspetiva que a tecnologia ‘blockchain’ impacte o Direito? E qual o horizonte temporal dessa revolução? 

A revolução já começou e o impacto vai sentir-se nos próximos 3 anos, em diante. Há poucos meses o parlamento europeu apresentou uma proposta legislativa, no sentido da regulação da tecnologia blockchain ao nível dos mercados financeiros. Em 2022 espera-se uma sandbox regulatória da União Europeia para este tipo de tecnologia e o euro digital parece chegar aos nossos “bolsos digitais”, já em 2024. Em dezembro passado, o JE realizou um webinar onde foi demonstrada a primeira execução, em Portugal, de uma hipoteca através de um Smart Contract, e temos muitas empresas portuguesas a adotar e a pensar este tipo de ecossistema. Este impacto também já se faz sentir nas universidades e nas escolas de negócios, onde o tema ganha relevância. Neste momento, considero que as escolas de negócios portuguesas já oferece grandes formações nesta área e eu tenho a sorte de coordenar o Programa de Blockchain & Smart Contracts da Nova School of Business & Economics.

O advogado do futuro vai ter uma função mais preventiva? A vertente de resolução de litígios vai perder importância? 

No futuro, o advogado vai aumentar o seu raio de ação. Terá de ser um profissional com uma formação muito sólida na área do direito, mas terá de ser capaz de trabalhar, ele próprio, num novo ecossistema legal. Tem que ser preventivo no momento em que cria as condições de um contrato autoexecutável para o seu cliente, mas deve estar preparado para resolver litígios em tribunais virtuais – veja-se o exemplo inglês, onde esta realidade é testada há mais de 5 anos - ou através de arbitragens descentralizadas, onde os jurados são invisíveis e, os factos, aqueles com valor para a causa, foram previamente definidos por um algoritmo. Por incrível que pareça, não se trata de ficção. Até lanço o desafio ao governo português, no sentido de encarar estes ecossistemas legais como oportunidades para Portugal brilhar, a nível internacional, na conceção e na idealização da justiça para o século XXI.

Vêm aí as sociedades multidisciplinares. As sociedades de advogados portuguesas vão ter a concorrência crescente das firmas de consultoria e das grandes tecnológicas, com soluções de “legal tech” que estão a crescer em todo mundo? 

As sociedades de advogados multidisciplinares já existem noutros países e também vão chegar a Portugal, muito rapidamente. É indeclinável, e o nosso legislador sabe bem disso. Eu sou sócio de uma firma de advogados que me permite ter uma maior sensibilidade para este tema. Porque, em Portugal, não somos multidisciplinares, mas, se entrar no escritório de Madrid, já me irei cruzar com muitos engenheiros. Admito que não observo qualquer limitação na forma como se defendem os interesses dos clientes nem conheço qualquer tipo de insatisfação na concretização daquele modelo. Sobre a concorrência das grandes firmas de consultoria, posso ter-me equivocado um pouco. Em 2017, quando via a Ernst & Young adquirir a Riverview Law – a melhor startup de advogados do mundo naquela altura – eu usei, muitas vezes, esse exemplo para provar a dimensão que essa concorrência poderia vir a ter em relação às sociedades de advogados. Hoje penso um bocadinho diferente e estou certo que, as empresas de consultoria, enfrentam um desafio tremendo, ao ponto de, também terem de se reinventar, nos próximos anos. A quarta revolução industrial está, pela primeira vez, a chamar os advogados ao seu epicentro. Não há transformação digital sem regulação e não há euro digital sem a criação de novos conceitos jurídicos como, por exemplo, a noção de “cripto coisa”. Não vai ser fácil para as multinacionais da consultoria adquirirem equipas de advogados preparados para estes impactos, porque essas equipas e esses advogados ainda não existem a essa escala. Os advogados – pelo menos, aos mais atentos – só agora começam a treinar-se e a preparar-se para este novo tipo realidade e para a compreensão dos novos ecossistemas. Por isso, quando estes advogados estiverem no mercado, serão tão requisitadas que não deixarão de ter o seu próprio negócio, numa indústria legal, cheia de oportunidades e em florescimento.


O sistema de Justiça e a magistratura portuguesa em particular estão receptivos à mudança tecnológica? 

Tenho uma grande admiração pela magistratura portuguesa e, devo dizer, que os advogados terão muita responsabilidade na transformação digital dos nossos tribunais. Nós, advogados, temos de ter a capacidade de levar aos tribunais o melhor estado da técnica. Se eu, advogado, não confrontar o juiz com uma nova prova – por exemplo, um documento assinado digitalmente e autenticado numa blockchain - esse juiz nunca vai puder ter a possibilidade de pensar sobre ele, admiti-lo ou não. De resto, concebo que vai ser tão fascinante para os juízes como para os advogados. Até porque as profissões jurídicas existem para resolver problemas das pessoas. Quanto mais digitais forem essas pessoas, mais digitais terão de ser os tribunais. É uma realidade que a magistratura terá de encarar e, não tenho dúvidas, que irá saber encarar. 

E a Ordem dos Advogados? 

As ordens profissionais terão de ser líderes na preparação dos seus profissionais. Terão uma responsabilidade acrescida, sob pena de se esvaziarem em algumas das suas competências. No caso dos aspirantes à advocacia, é a Ordem quem tem a responsabilidade da sua formação, através de um estágio, sujeito a avaliação teórica e prática. Ora, se estes jovens não forem preparados para a quarta revolução industrial, não terão as mesmas oportunidades no mercado de trabalho. Observe-se o exemplo da Google que comunicou, há poucos dias, deixar cair a obrigação de formação superior para contratar jovens. Nós não vamos querer, com certeza, um jovem autodidata, mais bem preparado que um advogado estagiário a cumprir todos os ministérios da sua evolução técnica. Acredito que o senhor bastonário já vislumbrou desafios e oportunidades para os próximos anos e será, certamente, um tema a merecer toda a sua atenção.

(Este artigo trata-se de uma republicação de uma entrevista de Nuno da Silva Vieira ao Jornal Económico, publicada a 16 de julho de 2021)
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Publicado em 
29/11/2021
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