omos o país do metafísico e do imaterial: das exaltações de uma saudade, que parece nunca nos largar, à viagem pela tristeza saudosa dos fados, canta-se um país que parece dizer-se imune a sentimentos de maior, que sentado aguarda por algo.
Numa vintena de anos que levo de Portugal sinto que os dias se fazem curtos e a memória pequena demais para recordar o último dia sem crise. Maiores ou menores, as crises parecem ser o cobertor da letargia lusitana, reagente por necessidade e esquecida do passado por imperativo consciencial.
De todas vezes que nos vimos em aflição, depositámos a vontade e a força de recuperar em fazer sentido dos números. Consensos sobre a forma não os havia, mas os objetivos eram comuns: diminuir o défice e resfriar o crescimento da dívida. Seguida a prescrição, os anos vindouros seriam de maior prosperidade. A pobreza atenuar-se-ia e cumprir-se-ia o fim último da política: melhorar-se-iam as vidas das pessoas.
A crise não chegou primeiro aos números, mas avançou no entretanto pelas pessoas adentro, despoletando o pavor pela doença. A sociedade como a conhecemos parou e está recolhida em casa. Aguarda com uma paciência impaciente, por algo: pelo aumento do número de casos, pelo despoletar do vírus no seio familiar, pelo abrandamento…
Há uma crise que é calamidade e emergência, diferente de todas as outras. Desta vez, voltamos a reagir, mas as vidas não se salvam pelos números, mas com os números.
Sabe-se que algo já mudou e muito terá ainda que mudar. O covid-19 arrastou-nos para casa, parou empresas e estrangula os serviços que, resistentes, se mantêm abertos porque a população assim pede e necessita.
O Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e os Governos nacionais desmultiplicam-se em esforços, apoios, créditos e sensibilização das pessoas. Pede-se calma, ânimo e esperança no triunfo da sociedade global à primeira ameaça verdadeiramente global que enfrentamos. Todos com a mesma certeza: o prejuízo maior será sempre o das vítimas deste surto epidémico.
Antecipam-se meses complicados e o futuro é ainda incerto. A solidariedade das empresas e a sociedade civil desdobram-se em iniciativas, movimentos, projetos, atividades… sente-se o pulsar do calor humano pelos gestos que se reproduzem e multiplicam: uma esperança na humanidade vê-se restituída e avançamos juntos compassadamente.
Daqui por uns anos avaliar-se-á melhor o quanto mudámos por estas longas semanas em confinamento, ou se mudámos sequer. E escrever-se-á que tipo de sociedade emergiu da adversidade: se mantivemos os mesmos hábitos, se nos tornámos mais devotos ao afeto e aos outros, valorizando a proximidade, o contacto, o abraço e o beijo, que agora nos vemos impedidos de dar. Se, pelo contrário, nos entregaremos ao imediato, a um carpe diem de sentimentos, aspirações e ações.
Enquanto as pessoas esperam em casa, há um país que age e reage como pode. Vive-se a interrupção da apatia e as saudades da nossa vida de há uns meses crescem. O fado calou-se e nas ruas há um silêncio estranho. Escuta-se esperança à porta das casas.
Adaptando Saramago, arrisco-me a dizer que do caos se decifrará uma ordem.
Lucas Sousa é aluno de Economia na Nova School of Business & Economics e integra o Nova Debate - Sociedade de Debate da Universidade Nova de Lisboa.